Pensamentos de quarentena

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Ouça ouvindo: Bem Que Se Quis - Marisa Monte

As lágrimas irritantes molham meus fones de ouvido porque a gravidade as fazem cair. Eu fecho os olhos, limpo o rosto com a manga da blusa dobrada, respiro fundo buscando o ar que falta pois meu nariz está entupido, e percebo que muito tempo já se passou desde que meu peito começou a doer. E dói, sempre, como se fosse a primeira vez. De tanto tentar esconder os motivos, ou, de tanto tentar esconder de mim mesma que dói, eu parei de tentar. Então não sei ao certo o que aconteceu: se foi Deus que me abandonou ou se eu o abandonei. Se abandonei Deus, fui burra pois não há eu sem Deus e agora até as coxas desistiram de funcionar. Mas se Deus me abandonou, o que exatamente eu deveria fazer? Continuar rezando na esperança de ser ouvida? Continuar pedindo respostas para perguntas que eu nem formulei? Às vezes imagino alguém lá em cima dando risadas de mim, como se eu fosse idiota o suficiente para acreditar nEle. E agora, aqui, expondo minhas feridas mais incuráveis e profundas, percebo que, no fim, o problema sou eu mesma.

Eu não vejo o fim disso tudo e, muito menos, vejo o início do fim. Eu gostaria de ser guiada por alguns segundos para sentir nem que seja um toque externo nessa minha mão gelada, mas nem isso. Cada dia que passa percebo que está cada vez mais escuro e eu estou cada vez mais sozinha - o que é triste mas é mais seguro. Acontece que eu nunca pedi por segurança. Nunca pedi por conforto ou realeza mas muito pelo contrário, sou tão entregue que não me vejo sendo instruída por qualquer outro sentimento que não a confiança. Eu confiava demais. Em tudo, em todos e em Deus. Mas agora, algo em mim morreu, o que me fez querer criar essa barreira mais que visível que faz com que eu quebre todos os elementos sólidos dentro de mim só para que ninguém se aproxime pois eu sei que se alguém entrar vai querer sair e isso vai doer como da primeira vez, de novo.

Entrei naquela parte da vida que a gente tem tanto medo de buscar, porque o novo pode ser muito pior do que já existe. E eu realmente não quero sair debaixo de onde estou, que não é bom, mas pelo menos é conhecido. E eu sinto fome de aventura. Sinto sede de paixão e de intensidade. Porém, eu morri. Uma parte minha foi entregue à tudo o que eu perdi e toda vez que eu fecho o olho só consigo ver um passado muito mais excitante do que meu presente monótono. Nunca fui tão apática. Nunca me odiei tanto. Nunca quis tanto ser mais nova e viver tudo o que eu me dispus a viver. Hoje, não sei se por medo ou por qualquer outra coisa, só quero meu conforto estático e algum plano confortável que me dê estabilidade por alguns anos.

É triste perceber que não consigo passar dos primeiros parágrafos pois eu me bloqueei completamente para sentir qualquer coisa. Ontem a noite, na penumbra do quase sono, lembrei tanto do que sonhei e acabou que foi um suspiro perceber que eu ainda sinto, nem que seja só dor. Fico tão desconfiada desse meu confinamento voluntário que qualquer sinal de qualquer coisa vira um alerta. Me pergunto se isso é coisa da idade - e concluo que não, pois aos 20 Patti Smith se mudou sozinha pra Nova York. Talvez sejam meus traumas, o que também não faz sentido porque não vivi o suficiente para ter traumas tão complexos. E concluo que é: Deus.

          E.P.O.C.H

A vingança divina finalmente se fez presente e não posso deixar de admitir que me sinto leve. Agora, finalmente, eu e Deus estamos quites e ele não tem mais nada a tirar de mim, já que tirou tudo o que eu tenho: meu coração e minhas palavras. Cada vez mais me murcho como o girassol que busca a luz debaixo da terra e, cada vez mais, as metáforas me fogem como se elas não me pertencessem. Vai ver, elas nunca me pertenceram mesmo e eu que sou soberba o suficiente para acreditar que algo me foi tirado. Eu nunca tive nada. Eu tinha esperança, mas isso ainda tenho. Não tenho visão, nem ambição, nem amo nada o suficiente para depositar minhas mais profundas poesias - que não, não escrevi. Mas tenho amianto, e tenho plantas e uma roupa de cama nova que parece me abraçar no fim do dia. A luta parece eterna e só existir me cansa.

É engraçado escrever e sentir raiva a cada palavra que digito. Sinto raiva do que penso e ainda mais de como isso é transformado em textos, em livros, em crônicas. É que se cada parte minha estivesse me puxando para um lado complexo da minha personalidade e eu nunca entendi muito bem como isso funciona. Gostava mais de quando eu me admirava e me sentia bem compartilhando meus sentimentos pro mundo. E agora eu sinto o quê, medo? Medo de ser vulnerável, de admitir que estou péssima, que a cada dia que passa sinto mais vontade de desistir? Percebi que ser adulto é assumir uma parte sua que te torna deplorável: meu ex-namorado virou fumante, grande parte dos meus parentes são alcoólatras, eu mesma estou viciada em remédios. O que me dói é pensar que isso nunca vai acabar porque depois de adulto, a gente morre.

Ainda me faltam muitos pensamentos avulsos para escrever sobre e eu não consigo organizar porque as gavetas estão todas trancadas. Em 2015 escrevi um poema que apontava a forma com que eu me guardo e, ironicamente, o poema se chama gavetas mesmo. Acontece que naquela época eu era a personificação da exposição em massa e amava ser quem eu era. Amava falar alto e amava pensar que várias pessoas estavam me lendo, simultaneamente, e pensando como eu conseguia espremer bem a sintonia adolescente. Analogamente, hoje, mais do que nunca, me tranquei. Poucas pessoas - e isso pode ser, literalmente, contados nos dedos - sabem os demônios que guardo. E agora vocês: vocês que estão lendo esse texto (que espero que não sejam muitos) sabem um pedaço dourado desse palito velho e mastigado que sou. Sabem que, por mais que eu não escreva muito sobre as minhas dores, vocês sabem que estou tentando, primeiramente, acessa-las.

Sei, por fim, que a tendência da curva é sempre diminuir. Hora ou outra, a gente enfrenta o monstro que nos faz sonhar por oito ou nove horas sem parar e, depois, enfrenta o monstro que não deixa a gente dormir. E esse é o ciclo. Por enquanto, o que me resta é, veja bem, manter a fé de que esses dois últimos anos: ou serão esquecidos ou serão lembrados o suficiente para não se repetirem. De agora em diante - digo isso mas a verdade é que não tenho plano algum -, pretendo ser um pouco menos minimalista e deixar os fones se molharem sempre que for preciso.

Uma parte minha que vocês não conhecem talvez seja essa: escrever nunca foi minha primeira opção.

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